APENAS UM RELATO!
Durante quase dois meses do ano de 2000, a antropóloga Roberta Mélega (*) esteve em dois pelotões de fronteira situados em terras indígenas, buscando informações para escrever sua dissertação de mestrado. Leia o relato escrito especialmente para o site do ISA, a propósito de um especial sobre índios e militares, que reúne documentos sobre o tema. Roberta retrata cenas observadas por ela, que ilustram bem situações vividas entre índios e militares na fronteira amazônica.
Uma crônica da relação índios e militares na Cabeça do Cachorro (AM)
Em 2000 passei cerca de um mês no Pelotão de Fronteira (PF) de Maturacá, entre duas aldeias Yanomami e três semanas no Pelotão de Fronteira de São Joaquim, situado ao lado de uma aldeia Kuripako, no alto rio Içana. Na cidade de São Gabriel da Cachoeira entrevistei vários soldados e oficiais do 5° Batalhão de Infantaria de Selva (BIS) e do Batalhão de Engenharia e Construção (BEC), ao longo dos três meses que passei na região. Eis, a seguir algumas das minhas impressões a respeito da relação índios-militares:
Pelotão de Fronteira de Maturacá
No PF de Maturacá, pude observar um permanente clima de tensão entre os militares e as duas aldeias Yanomami ali presentes: Maturacá e Ariabu. Daniel, chefe da aldeia de Maturacá, reclamou inúmeras vezes da ligação que ocorre entre militares e índias: os militares (em sua maioria soldados) procuram as índias em busca de sexo e mesmo para um tipo de namoro. Muitas vezes as índias aceitam, recebem presentes, mantêm a ligação clandestina, mas quando ficam grávidas os militares somem ou negam o envolvimento (costumam ser transferidos).
Uma índia de Maturacá me falou de cinco garotas de sua tribo que engravidaram de militares. Com os dados que levantei, não foi possível caracterizar a natureza da ligação nesses casos (namoro, relação sexual consentida, estupro). Esta mesma índia me falou que um dia estava andando por uma picada quando viu um soldado atrás da árvore de calça abaixada provocando-a com palavras eróticas.
Em um dia de “festa” dos soldados no pelotão, ouvi de um soldado já meio bêbado que não dá para passar meses a fio sem mulher, que aquela situação era insustentável e que eles tinham que procurar as índias por extrema necessidade. Quando estive no PF de Maturacá, havia 42 soldados, dez cabos, sete sargentos e quatro tenentes (sendo três da área de saúde). A maior parte dos soldados não tinha família ali; dois sargentos também moravam sozinhos; e os três tenentes de saúde eram solteiros. Os militares que tinham mulher e filhos eram os que menos causavam problemas com índias ou pelo abuso do álcool. As esposas de militares conviviam bem entre si e cheguei a assistir um campeonato de vôlei das esposas com as Yanomami: três times de índias (das aldeias de Maturacá, Ariabu e das estudantes) e dois times de brancas (esposas de sargentos e do tenente; esposas de cabos e soldados).
O único soldado Yanomami que havia ali era o Lins, que morava em Maturacá e era considerado rebelde pelos seus superiores. Bebia bastante, já havia sido punido inúmeras vezes e desacatado o comandante, mas os militares conservavam-no ali, pois ele era o único elemento de ligação com as aldeias. “Se não tivesse disciplina e hierarquia seria bom o exército”, Lins desabafou. Ele acabou entrando para o exército para “tirar documento”, na linguagem dos soldados da região. Para tirar a carteira de trabalho, é necessário o documento de reservista, o que leva os índios a terem contato com o exército.
No meio da confusão, eles não ficam sabendo que, como índios, não precisam servir o exército se não quiserem – acredito que a maioria desejasse se alistar, mas conheci alguns que entraram para o exército por desinformação.
Em Ariabu os chefes também não gostam da proximidade dos militares, mas têm uma relação melhor com o pelotão por causa de um Yanomami mais integrado, que tem balsa de garimpo e barcos para fazer viagens a São Gabriel.
Mas mesmo em Ariabu existe um tipo de reação à expansão dos militares pela região. Em um domingo, os Yanomami das duas aldeias se reuniram depois da missa para discutir a ocupação que os militares estavam fazendo da área em volta da pista de pouso, para a construção de casas para soldados e cabos com família. Os chefes argumentavam que justamente por aquela região passava o caminho para várias de suas roças, e que estava ficando difícil chegar às plantações.
Uma situação recorrente nas aldeias Yanomami ilustra bem o choque cultural que ocorre entre eles e os militares. Praticamente todos os dias, do final da manhã até escurecer, os homens mais prestigiados da aldeia se reúnem para cheirar o paricá, uma substância fortemente alucinógena. Sob efeito do paricá, alguns homens realizam curas, outros têm visões, alguns inventam canções e renovam os mitos.
Quando entra em transe, o Yanomami vai dançar e cantar no meio da aldeia, que se torna então um espaço ritualmente sagrado para a tribo. Atravessar esse espaço durante o ritual é um tabu, como eu mesma verifiquei: na primeira vez que cheguei na aldeia de Maturacá, perguntei pelo chefe, e me apontaram a sua casa, que era do lado oposto de onde eu estava, e fui atravessando a aldeia, quando vi uma mulher gesticulando. Cheguei mais perto, e ela me falou em voz baixa: “não atravesse, vá pelas laterais, pois eles estão cheirando paricá!”. Imediatamente fui para uma das laterais e contornei a aldeia até chegar a casa do chefe.
Certo dia, quando estava na aldeia de Ariabu, os chefes me pediram para avisar os militares que eles não poderiam entrar de trator para buscar coco no meio da tarde, pois estaria ocorrendo o ritual do paricá. Fui ao pelotão, avisei um oficial, e ele me disse que não havia problema, que dava para ir “pela ponta” da aldeia. Voltei para a aldeia, e algum tempo depois, quando um Yanomami estava em transe no pátio da aldeia, apareceu o mesmo militar dirigindo o trator, tentando passar pelo centro da aldeia. Os índios que estavam participando do ritual se juntaram e impediram o trator de atravessar o centro. O coco seria usado para a comitiva de generais que chegaria no dia seguinte.
Apesar de ter presenciado todo o episódio, não consigo definir se os militares agiram daquela forma por ignorância do significado do ritual para os Yanomami ou por desrespeito intencional às crenças indígenas. A imagem romanceada de índio é muito usada nas comitivas que visitam o pelotão. O comandante pede na véspera para que os chefes apareçam “a caráter”, ou seja, pintados e de penas, e deixam os índios que quiserem entrar no pelotão.
Algumas vezes os chefes Yanomami vão, outras não. O soldado Lins é instruído para se pintar, vestir plumas e segurar uma zarabatana na hora da apresentação do pelotão (formatura), situação que ele odeia, como ele mesmo me confidenciou. Mas mesmo com todos os percalços, Lins continuava no PF: apesar dos Yanomami não gostarem muito dos militares, Lins tinha um certo prestígio por ser o “novo-rico” na fronteira. Sua casa tinha antena parabólica, telhado de zinco, ele usava roupas novas e ganhava R$ 600,00 por mês.
Terça-feira de manhã era o dia de troca no pelotão: dezenas de índias surgiam com mandioca, frutas, batata-doce e coco para trocar por arroz, feijão e leite em pó. Elas primeiro descarregavam o que tinham trazido e formavam fila para receber o combinado. Cada uma trazia seus saquinhos plásticos surrados e a maioria pedia para receber mais leite em pó, pois o feijão era muito duro de cozinhar sem panela de pressão. O sargento dizia não poder dar mais leite em pó e punha a quantidade combinada de cada item. Uma situação tensa, com o sargento reclamando das índias e as índias falando entre si em Yanomami e rindo…
Em uma terça-feira que não assisti à troca, uma índia me parou no meio da tarde na aldeia para me pedir que eu assistisse a todas as trocas, pois quando eu estava por perto, o sargento as tratava melhor, e que daquela última vez ele havia mandado embora muitas delas. Outra situação tensa ocorreu nas vésperas das eleições, quando surgiram candidatos distribuindo bolachas, tabaco e camisetas aos índios. Como já havia terminado a época de campanha, os militares começaram a apreender o material distribuído fora do período legal, e chegaram a incriminar uma candidata. Quando quiseram dar uma busca na aldeia Maturacá, os índios se juntaram na entrada e impediram o ingresso dos militares, dizendo que “vocês mandam no pelotão, quem manda na aldeia é a gente”.
Existe uma cantina no PF que é usada tanto pelos militares quanto pelos garimpeiros e os Yanomami. Os índios normalmente compram farinha, refrigerante, açúcar e biscoito a um preço bem alto. O que acontece a maior parte das vezes é que eles ficam endividados e sem muita perspectiva de pagar, causando tensão ainda maior com os militares. Outro problema é a bebida alcoólica: os índios das comunidades não podem beber, mas os índios soldados (como Lins) bebem com freqüência e se endividam (às vezes a lata de cerveja chega a custar cinco reais), causando confusão no pelotão.
Um dia antes de eu ir embora do PF de Maturacá, chegou uma comitiva organizada pelos militares para estudar o impacto ambiental da construção de uma estrada ligando Maturacá a São Gabriel. Os chefes indígenas das duas aldeias compareceram e ouviram o que o coronel responsável pela comitiva tinha a dizer: que a estrada ajudaria a escoar a produção de artesanato e mandioca dos Yanomami (tal benefício nunca havia sido cogitado pelos Yanomami) e facilitaria o acesso dos índios à cidade.
Depois de ouvirem, todos os chefes se manifestaram contra a construção da estrada, alegando que destruiria rapidamente o modo de vida Yanomami. Ficaram, então, de um lado, o coronel falando dos pretensos benefícios que a estrada traria; e de outro, os chefes indígenas dizendo que a estrada traria a destruição dos costumes tradicionais. Soube posteriormente que a estrada foi aprovada pelo Comando Militar, mas ainda não começou a ser construída. Pelo que pude observar, a alegação dos índios me pareceu procedente: a estrada ligaria aldeias que vivem em um modo tradicional Yanomami, a uma cidade com quase 12 mil habitantes, com comércio, telefone e outros estímulos urbanos. O choque cultural seria muito grande, pois os Yanomami sentiriam a presença do branco tanto em São Gabriel (os mais jovens se interessam por viver na cidade), quanto nas aldeias (facilita o acesso de brancos curiosos por conhecer uma aldeia indígena, além da maior presença dos militares).
Pelotão de Fronteira de São Joaquim
A reação dos Kuripako aos militares no PF de São Joaquim, no alto rio Içana, é bem diferente. Como não há lugar no pelotão para soldados e cabos com famílias, eles acabam alugando uma casa na aldeia Kuripako vizinha ao PF. Não vi soldado não-índio morando na aldeia, somente de outras etnias além da Kuripako. O deslocamento de tropas, que para os militares é bastante comum, para os índios tem outras implicações.
Os índios podem não se adaptar por questões culturais.
Por exemplo, um soldado Tukano me falou que os Kuripako são conhecidos entre os Tukano por serem traiçoeiros, por envenenarem quem eles não gostam. Este soldado estava morando em São Joaquim havia alguns meses, e continuava desconfiado dos Kuripako.
Outro problema é o da hierarquia, que é própria do Exército, mas que tem outros significados entre os índios. Se um cabo Maku der ordens a um soldado Tukano, provavelmente este soldado não obedeceria ao cabo. Enquanto os Maku são um povo tradicionalmente nômade e caçador, de pequena estatura, os Tukano são fortes, têm várias roças, pescam e moram em aldeias muito bem organizadas. As duas etnias vivem numa relação simbiótica: os Maku fornecem caça e frutas aos Tukano, enquanto estes últimos dão em troca mandioca e outros produtos agrícolas.
Os Tukano exigem freqüentemente demonstrações de subordinação do povo Maku, que é muitas vezes chamado de “os acendedores de cigarro” dos Tukano. Dentro deste contexto cultural, dificilmente haveria uma adaptação no exército entre pessoas com papéis tão diferenciados historicamente.
Evangélicos, os Kuripako não bebem, fazem refeições comunitárias e passam quase o dia inteiro nas roças. Os cultos evangélicos na língua indígena acontecem todos os dias, e os Kuripako se reúnem também para o trabalho coletivo na aldeia.
Os soldados índios do PF que moram na aldeia (principalmente os não-Kuripako) desestruturam muitos destes costumes. Primeiro, porque eles não participam da vida da comunidade: suas mulheres não vão à roça, eles não ajudam nos trabalhos coletivos nem fazem refeições juntos. Segundo, porque eles começam a trazer hábitos que a comunidade não sabe lidar: dinheiro para pagar os homens por algum serviço; bebida alcóolica (já houve um caso de um soldado bêbado ameaçar o chefe da comunidade); gravidez de índias da aldeia por soldados que rapidamente são transferidos.
Embora tenha ouvido falar de casos mais explícitos de abuso por parte dos soldados, muitas vezes a ligação índia-militar interessa a ambos: mais de um soldado me apontou confidencialmente algumas garotas que vagueiam pela pista de pouso à noite em busca de parceiros. Para muitas delas, a idéia de se relacionar com um militar é uma forma de fazer parte do mundo do branco.
Uma figura importante para compreender essas ligações era Tiago, cabo Kuripako que morava na aldeia e que era o intermediário nas relações índios-PF. Bem-visto no pelotão e na aldeia, ele conquistou o respeito e a confiança de ambos. Seu filho adoeceu, e Tiago esperava vir socorro médico por avião, que não apareceu. Depois da morte de seu filho, ele estava indo morar em São Gabriel.
O número de soldados, cabos, sargentos e tenentes de São Joaquim é semelhante ao PF de Maturacá. De um modo geral, os Kuripako eram muito mais submissos aos militares que os Yanomami. Quando chegava uma comitiva, todos os índios da comunidade iam cantar o hino nacional para os generais, enquanto os Yanomami pensavam duas vezes se apareceriam no pelotão.
Mesmo assim, os Kuripako demonstram uma certa desconfiança em relação aos militares. Foi-me relatado por uma índia e dois militares que, alguns meses antes, um chefe Kuripako tinha adoecido gravemente e o médico do pelotão não era bem visto pelos Kuripako. Quando o avião militar chegou para levar o enfermo para o hospital de São Gabriel, ele tinha acabado de falecer. O médico colocou algodão nas narinas do morto, preparando-o para o enterro. Os Kuripako viram a cena e começaram a acusá-lo de ter matado seu chefe, e desde então a ligação do médico com os índios piorou muito.
Percebendo essa desconfiança, um enfermeiro de uma ONG que cuida da saúde dos Kuripako fixou-se em uma casa próxima à comunidade para atender os índios. Ele me contou que na vez anterior, havia se instalado no pelotão, e não apareceu quase nenhum índio para ser consultado.
A mesma situação de Maturacá, do soldado indígena como o “novo-rico” da fronteira, acontece em São Joaquim: telhados de zinco, parabólicas e o uso de bebidas alcóolicas trazem um novo status para esses jovens. De um modo geral, as índias das aldeias e mesmo de São Gabriel preferem casar com um militar – assim, o índio soldado é mais valorizado por elas que o índio não-soldado.
Relatos de Militares e de Esposas de Militares
Atuando na região chamada “Cabeça do Cachorro”, o exército possui seis pelotões ao longo de 1.500 Km de fronteira: Iauareté, Querari, São Joaquim, Cucuí, Maturacá e Pari-Cachoeira e, em construção, Tunuí. Oficiais em começo de carreira, esposas de militares e um sargento me contaram que a Amazônia é uma região atraente para os militares da infantaria.
A verba da transferência, que depende da distância e do tempo de serviço, é significativa para os oficiais e mesmo para os sargentos. Somente para ir, um sargento ganha em média R$ 25 mil, um tenente, R$ 30 mil, um capitão, R$ 35 mil, um coronel, R$ 40 mil e um general, R$ 70 mil (de acordo com os relatos que tive). A volta depende do lugar da transferência. Esses números são aproximados, pois variam também com o número de dependentes (solteiro ganha menos).
Tipicamente, um tenente que saiu de Santa Catarina para servir na Amazônia vai ganhar bem mais que um tenente nas mesmas condições que saiu do Pará. A esposa de um tenente do Sul me disse que seu marido ganharia cerca de R$ 70 mil com ida e volta à terra natal.
Um oficial em começo de carreira me informou que, a cada dois anos, o oficial pode indicar cinco opções de lugares que deseja ir, depois deve passar no mínimo dois anos no local, e pode pedir uma nova transferência, se desejar partir.
Segundo ele, a Amazônia tem sido cada vez mais colocada em primeira opção de escolha.
Esse mesmo oficial me explicou que existe a “medalha de mérito amazônico”: Dois anos sem punição dá direito a uma castanheira; cinco anos: duas castanheiras; dez anos: três castanheiras, o que ajuda na futura promoção. Segundo ele, a estadia na Amazônia conta 1/3 a mais de tempo para a aposentadoria. A mulher de um tenente que veio da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) me contou que o marido precisou da influência de um general para servir em São Gabriel.
Dos recém-formados em 2000 que escolheram servir na Amazônia, conversei com o mais bem colocado, que ficou em 23° lugar. Ele me disse que quatro recém-formados escolheram servir em São Gabriel, e dentre eles, o pior colocado era o 63° lugar, do total de 160 formandos. Existe apenas um oficial indígena no Brasil, segundo informações dos militares da região: Josimar Marinho, índio Tukano, tenente e capelão (veja nota 1 ao fim do texto).
Todos os outros índios que pertencem ao exército são majoritariamente soldados, em menor número cabos, e me disseram haver alguns casos de sargentos (que eu mesma não conheci). O comandante me informou que vem crescendo o número de jovens indígenas que ingressam voluntariamente nos batalhões de São Gabriel a cada ano (veja nota 2, ao final do texto).
Conversando com soldados e oficiais, pude constatar que são poucos os índios integrantes do exército que estão estabilizados na sua posição, fazendo parte do efetivo permanente. A maioria é obrigada a se desligar com oito anos de serviço, a fim de evitar a estabilidade. Um oficial me disse que isso não ocorre apenas com os índios, mas faz parte de uma política administrativa dos militares para enxugar os custos: restringir o número de funcionários militares estabilizados, que têm direito à aposentadoria pública, à saúde, ao pagamento de pensão à viúva, entre outros.
Conheci um soldado e um cabo indígena que foram estabilizados justamente por possuir habilidades específicas: um sabia andar bem no mato de São Joaquim e pilotar barcos à noite, o outro era um importante elemento de ligação do pelotão com a comunidade vizinha. Entretanto, de um modo geral os índios fazem trabalhos pouco qualificados no quartel, como pintar paredes, fazer faxina, entre outros, e acabam sendo dispensados muito antes da estabilização.
São Gabriel é uma cidade sem infra-estrutura, com alto índice de desemprego, e os índios que ali permanecem acabam exercendo as funções mais desvalorizadas: faxineiros, vendedores, pescadores, entre outros. Essa situação miserável leva a uma hiper-valorização do exército como o “redentor”, a solução dos problemas. Em um certo sentido, os militares simbolizam o poder dos brancos, e alistar-se no exército é uma forma de tentar fazer parte desse poder.
Constatei que a maior parte dos soldados indígenas vai se acomodando, permanecendo no exército até quando for possível, sem maiores preocupações com o futuro. Conheci um soldado Tukano no PF de Maturacá que havia gasto o dinheiro de todo um ano de trabalho no pelotão em apenas duas semanas em São Gabriel. Alguns soldados indígenas estavam endividados no PF por causa do gasto com bebida.
Enquanto estão no Exército, os soldados indígenas são prestigiados pelos demais índios por possuírem casa com telhado de zinco em vez de palha (apesar do telhado de zinco esquentar e fazer um barulho ensurdecedor nas chuvas, ele é valorizado porque dura mais) e antena parabólica. Recebendo a quantia inicial de um salário mínimo no primeiro ano, o soldado reengajado recebe um aumento substancioso a partir do segundo ano: cerca de R$ 600,00, variando de acordo com o tempo de serviço e o número de dependentes (segundo informações dos militares). Para a região, é um dinheiro considerável, que atrai a admiração da família e o interesse das mulheres.
Quando são desligados, os índios deixam a instituição militar bastante desorientados: já viveram demais a vida de branco para voltar, como se nada tivesse acontecido, para suas aldeias. Verifiquei que a maior parte dos Yanomami e Kuripako que serviram o exército voltaram para suas comunidades. A volta depende de alguns fatores, como raízes na comunidade, vínculos na cidade e tempo de quartel.
Tipicamente, o soldado indígena cujos pais ou a companheira já residem em São Gabriel e permanecem mais de quatro anos no quartel tendem a se fixar na cidade depois que deixam a instituição militar. Já os que passaram apenas um ou dois anos no exército e possuem raízes fortes nas aldeias tendem a voltar para suas comunidades.
Em 2000, o comandante me informou que ingressaram nos batalhões de São Gabriel 180 índios e 50 soldados de fora (das cidades de São Gabriel, Barcelos, Santa Isabel e em último lugar, Manaus). Segundo ele, os índios militares já representam quase 40% dos cabos e soldados da região, e a perspectiva para os próximos anos é de aumentar ainda mais o efetivo indígena no exército e o número de pelotões de fronteira na região amazônica.